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“CANTATA SÁFICA” DO MACHO HUMANO EXCLUÍDO

• Atualizado

“CANTATA SÁFICA” DO MACHO HUMANO EXCLUÍDO

 

Ricardo Maia

 

INTRODUZINDO ― A intelectual Camille Paglia (2000), uma norte-americana que se auto-define como sendo “uma lésbica pró-pênis”, é a única voz dissonante, em meio às lideranças feministas internacionais, por se solidarizar com o macho da espécie humana por este ter seu “pênis ereto” rejeitado pelas lésbicas. Pois ela diz que a mulher que acha o pênis feio, idiota ou risível é neurótica. E repete categórica: “[...] o pênis ereto é o símbolo máximo do desejo humano.”

            É assim que Camille Paglia (1947-   ) defende “o poder criador” da masculinidade e do homossexualidade masculina, criticando, com ferocidade, as feministas que discriminam os homens. Ela procura, desse modo, dar uma “resposta bissexual” para a arte e a para cultura mesmo compreendendo que nem todo mundo consegue ser bissexual: “[...] quando se estuda a História da Arte, aprende-se a ver beleza tanto de um nu masculino quanto de um nu feminino.” Por quê? Porque ela diz não gostar de certo tipo de “instinto totalitário”, que pode estar surgindo na esquerda americana.

            No entanto, descrevendo-se como um avanço na história do feminismo, a partir da “primeira onda” deste movimento, datada por ela dos anos 1920, Camille Paglia se autoclassifica como libertária e protofeminista antecessora de Betty Friedam (1921-2006). Mesmo assim ela foi expulsa do movimento das mulheres devido, segundo ela, a questões ligadas a sexo e cultura popular. Banimento este que ocorreu no fim dos anos 1960: “Pertenço a uma ala pró-sexo do feminismo, que tem sido muito vibrante na década de 90”, diz a autora de Personas Sexuais: Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson (Companhia das Letras, 1992). Daí ela classificar a si própria como uma “pornógrafa”. Inclusive pelo fato de, em suas descrições de arte, ela estar sempre tentando “achar a linguagem mais suculenta para estimular as respostas sensoriais do leitor.”

            Como prestigiada professora de Humanidades na Universidade da Filadélfia, Camille Paglia ― que nunca deixa de se orgulhar de ser neta de sapateiros e filha de imigrantes italianos vindo do sul pobre da Itália ― é convicta de que “só a educação salva a humanidade”. Por isso, segundo Edney Silvestre (2000), seus temas culturais preferidos são: feminismo, política, sexualidade, arte, música, cinema e, obviamente, educação. A razão de ser dessas preferências temáticas, mais especificamente a preferência por questões relacionadas ao binômio arte e sexualidade, deve-se, decerto, a uma obsessão vivenciada por Camille quando ainda era uma garotinha. Aliás, uma garotinha prodígio: “Durante minha infância, no interior do Estado de Nova York”, recorda-se ela, “uma coisa que me obcecava era uma estátua de São Sebastião, que ficava perto do altar, cravado de flechas, com sangue escorrendo dos ferimentos. Ele parecia estar apenas sentindo cócegas, eu não via nenhum martírio. Ficava fascinada com aquilo. Para qualquer lado que eu olhasse, via Cristo flagelado, caindo seminu, fazendo poses estranhas...” Mas, com o tempo e os estudos posteriores que Camille fez sobre “iconografia italiana”, ela viu que as coisas nas quais ela concentrava sua atenção eram “resquícios de cultos pagãos na Itália.”

            Ora: como ainda nos informa Edney Silvestre (2000), desde que Camille Paglia apareceu no “cenário” da década de 90, ela possui uma “metralhadora [intelectual] giratória” da qual “não há aspecto da cultura que não tenha escapado” dela. O que decerto a torna, para o poeta alagoano Marcos de Farias Costa, uma legítima seguidora de “Afrodite armada”. Mesmo sendo também uma apologista do capitalismo: “Nunca fui contra o feminismo. Minha luta,” garante ela, “era contra uma espécie de Politiburo, contra a coterie das feministas poderosas de Washington e Nova York, que se apresentavam como feminista sem nunca serem. O que elas representavam”, dispara a autora de Vamps e Vadias (Francisco Alves, 1996), “era uma volta ao puritanismo.”

            Nos anos 1960, quando era uma adolescente (como também era, então, Marcos de Farias Costa), Camille Paglia já era fã de Andy Warhol e do Rock’n’holl. Entretanto, o “espírito revolucionário” daquela década não a impediu de adorar os EUA nem de se fascinar com glamour de Hollywood. Das grandes estrelas de cinema, Katharine Hapburn (1907-2003) era a sua inspiração. Inspiração esta que decerto foi determinante para que Camille se tornasse também uma estrela. Não da sétima arte, é claro, mas da intelectualidade iconoclasta em âmbito global.

            Pechada de conservadora por declarar que não tem “nada de antiamericanismo”, Camille Paglia, no entanto, defende a homossexualidade, a prostituição e a pornografia. Além de apoiar o suicídio e a liberdade de expressão, ela acredita que “o uso da droga deve ser legalizado.” Aliás, como Susan Sontag e Marcos de Farias Costa, Paglia acredita que arte e pornografia estão muito ligadas. De acordo com ela, o Papa é o maior colecionador de arte pornográfica do mundo. E a Itália, nunca se tornou realmente cristã. Esta informação, nos dada por ela, sobre os subterrâneos do Estado Papal é complementada por outra do poeta alagoano quando este nos faz saber que “a maior coleção de literatura erótica, cerca de 16 mil livros, está no Vaticano.”

            Na teoria ateísta de Camille Paglia, uma teoria que sem dúvida já se comprova na primeira leitura que se faça de Cantata Sáfica, onde quer que haja catolicismo latino ― por exemplo: Espanha, América Central e América do Sul ― encontram-se resquícios do passado pagão: “Sempre senti que havia um elemento pornográfico na iconografia italiana.” E acrescenta compartilhando com o poeta alagoano o que decerto se pode chamar de multiculturalismo ateu-religioso-juventudista: “Não acredito em Deus, porém, ao mesmo tempo, acredito em todas as religiões e todos os deuses.” E complementa: “Acredito muito na vitalidade e no idealismo dos jovens.”

            Como veremos a seguir, esta mesma “crença” foi a que motivou Marcos de Farias Costa a escrever (ou melhor, a pornopoemar) sobre a vida e o ideal lésbico-juvenil numa imaginária “Lesbos em Maceió”. Uma “Lesbos” que hoje, graças à imaginação deste grande poeta alagoano, se faz presente e se legitima, de modo pioneiro, nas cartografias do inconsciente político da Alagoas-artística.

            Pois bem, passemos agora à nossa leitura crítica do livro de Marcos:

            Em Cantata Sáfica: cenas da vida lésbica (Ed. Poligraf, 2011. 92 p.),obra de uma literatura pornopoética que já nasce prima no gênero, o “lesbianismo”ainda encontra-se concebido, por seu autor, como “homossexualismo” e/ou como “homossexualidade”. Tal concepção, sobretudo hoje em dia, não convém à ativa minoria gay ou lésbica. É politicamente incorreta na cena social pós-moderna.

           Sendo assim, a declarada falta de “constrangimento epistemológico” do poeta, como pesquisador erudito e independente, ao construir sua “Lesbos em Maceió” ―isto é, numa capital alagoana também insular e subjetivada ― é o que imputa a seu livro certa incorreção política diante dessa minoria. Uma minoria que Marcos parece querer colaborar, com erudição, na luta pelo reconhecimento de sua identidade homoafetiva (ou homoerótica) através da história.

            Mas o entusiasmo com a arte de Safo (c. 630 a.C.), confirmando a influência social milenar dessa minoria, desencadeou em Marcos de Farias Costa aquele “fantástico sentimento de identidade”, de que nos falam Deschamps & Moliner (2009, p. 151). Um “sentimento” que resultaria, segundo eles, de uma paradoxal constatação de semelhança e diferença. Mas também, penso eu, de um processo de identificação que é equivalente àquele motivado pelos ídolos cinematográficos. Pois como constata, com alegria erudita, o poeta alagoano: “Safo, artista aristocrática e inimiga do tirano Pítaco, embora apolítica, foi exilada em Siracusa, mas a sua glória (kléos) expandiu-se por toda a Grécia a ponto de seus compatriotas cunharem moedas com a sua efígie, ela ainda viva.”

            Em Marcos de Farias Costa é tanto e tamanho o entusiasmo por Safo que ele (que é também pesquisador!) de vez em quando, no processo de criação de seu livro aqui resenhado, transgrediu uma regra metodológica básica entre os investigadores profissionais da História: não olhar o passado com os olhos do presente, mesmo quando isso se torne uma grande tentação. Por isso que ele confessa: “[...] cometeu-se, aqui e ali, o delito de se imaginar a lésbica Safo caminhando na praia da Jatiúca, bebericando na orla e acompanhada por belas e sedutoras mulheres.”

            Daí ele compartilhar com a poetisa de Lesbos duas coisas: o amor pelas mulheres ― sejam elas o que forem! ― e, inclusive e sobretudo, uma obra “envolvida numa aura de contracultura sexual que a torna atualíssima.” Tão atual que “seus poemas”, como assevera ainda Marcos, provocam “uma atração fatal para os apaixonados da poesia grega arcaica.”

            Sendo assim, não se pode duvidar que foi essa atualidade radical de Safo quem mais estimulou o poeta alagoano, enquanto um heterossexual “machista” e convicto, a se transformar, de modo micropolítico, numa espécie de pastor-voyeur na “Igreja Lesbiteriana” de uma “Lesbos em Maceió”. Ou seja, de uma ilha num lugar culturalmente insulado onde ele a reterritorializa, de modo subjetivo, e a faz valer para que seja assimilada como se fosse uma Jerusalém Celestial às avessas. Ou então, na mais moderna das hipóteses, uma Igreja da Humanidade feminina e feminista a consagrar o “lesbianismo” positivando a “Cantata Sáfica” em Alagoas. E tudo isso, aliás, enquanto legitima culturalmente, no cotidiano alagoano, as “Cenas da Vida Lésbica”.

            Mas, como podemos pressupor, Marcos faz isso subvertendo a versão comteana ou original dessa “Igreja” humanista para ocupar nela, como se fosse um Teseu incólume entre as bacantes, a posição central de Clotilde de Vaux (1815-1846) decretando: “Sexo é um estado de graça”... Pois, de acordo com ele ainda: “[...] se o amor for invertido / Parece bem natural / Que elas troquem o marido / Por outra igual. / Quando se beijam / E se tocam / Seus sexos queimam /E se enroscam! / E adoram lamber / O visgo virginal, / Sempre a escorrer, / Da imensa catedral.”

         Ora: no livro de Marcos, a controvertida analogia teórica assinalada por Susan Sontag (1933-2004) (1987) entre pornografia e religião, se presentifica, micropoliticamente, com certo ressentimento e ênfase criativa nos versos do poema Lira Lésbica: um “prólogo imperial machista” ― como o qualifica o próprio poeta com ironia crítica e autocrítica ― no qual escreve: “E o macho foi descartado, / Quem sabe até extinto? / E as duas no reservado / Vão curtindo um vinho tinto / Claro que elas não têm pinto / Mas são boas no babado!”

         Nesse poema, influenciado sem dúvida pela imaginação pornográfica de um Denis Diderot (1713-1784), podemos encontrar alguns versos que aludem explicitamente a instituições, personagens e práticas sacrolibertinas como, por exemplo: uma “Igreja Lesbiteriana / Dos Santos Grelos / E Louvados Clitóris”, onde se ouve “litúrgicos apelos” de uma “Santa Rameira [que,] surubando [com] os padroeiros [,] engravidou do demônio” visando participar de “Uma orgia no céu”... Uma orgia que, como “Diz a freira com alvoroço / sem folga para o almoço / Gozando no mundo eterno”... “Vale mais que no inferno”.

          É assim que em tal “Igreja”, ou através de tal “Santa”, o poeta “machista” ― também “um ateu” para quem a genitália feminina é o que ainda lhe resta como “Promessa de felicidade!” neste mundo ― constata, com erudição pornopoética, um processo de “Lesbianização” global: “Há uma lesbianização no planeta / E ninguém pode negar / Que só uma belíssima buceta, / Faz melhor outra gozar.”

          O campo social onde se desenvolve tal processo nos é indicado nos versos de “Gozando reservadamente”. Neste último poema do livro, o poeta libertino foca e descreve a interação simbólica entre duas internautas apaixonadas. Ou melhor, duas supostas herdeiras pós-modernas de Safo que Marcos espiona, com sua “luneta” priápica, quando estas se encontram em interação no contexto da cibercultura: “Numa sala de bate-papo / Conversam duas mulheres: [...] Trocam e-mail e fones, até endereços formais ― / Na tela desenham cones, / E paraísos artificiais. / Uma é lésbica e a outra bi, / Na linguagem sexual: / Trocam mensagens entre si, / E gozam pelo virtual.”

           Se Safo chega assim a “inventar” a sensibilidade masculina, como assinala Marcos no texto introdutório de Cantata Sáfica, pode-se dizer também que este poeta, sendo afetado por tal invenção, reinventa por sua vez a homossexualidade feminina da “patrona mitopoética das lésbicas letradas”, transformando-a em sensibilidade “safada”. Neste sentido, Marcos de Farias Costa faz o caminho diametralmente oposto ao do helenista alemão Willamowitz-Moellendorf (1848-1931). Ou seja: a imagem de uma Safo pura e casta, livre da “pecha do homossexualismo”, jamais é negociada pelo poeta alagoano. Muito pelo contrário. Mas nos versos de “Lesbiânia”, um poema “epílogo”, Marcos parece tentar se explicar freudianamente assim: “Toda orientação lésbica / Quer e se fundamenta / Numa sublimação épica, / Que o superego inventa.”

            Vem na certa desse “superego” criativo, em Marcos de Farias Costa, a ambivalência do poeta em relação às mulheres homossexuais.Estejam estas na Lesbos de Safo ou na orla do bairro maceioense da Jatiúca. Pois em Cantata Sáfica é patente a indecisão deste poeta, um heterossexual assumidamente “machista”, em dedicar seu livro às mulheres em geral ou no particular, isto é, às lésbicas.

            Dizendo de outro modo: apesar de explorar criativamente fantasias voyeuristas, espionando as “cenas” da vida íntima de mulheres lésbicas, a ambivalência do poeta em relação a estas é bastante visível na vacilante atitude deste de homenagear, com exclusividade, não apenas “Às mulheres que sentem atração por mulheres”, mas, também e inclusive, às mulheres em geral: “Este livro é uma declaração de amor a todas as mulheres.” (Grifo nosso) Daí o “aviso” do poeta ― ou melhor, do pastor da “Igreja Lesbiteriana” de Maceió ― aos leitores “navegantes” de seu livro: “As bissexuais e heteroflexíveis terão suas vozes potencializadas em louvor a Safo, no altar de Vênus.”

            Ora: esse “aviso”, que é sinal de uma ênfase na diversidade intercultural feminina, desestabiliza categorias unitárias de “mulher”. No caso, a categoria de “mulher com orientação sexual homoafetiva”. Mas, em Cantata Sáfica, contraditoriamente não se questiona, como argumentaria Kathryn Woodward (2000, p. 55), “a perspectiva de que adotar uma posição política e defender ou reivindicar uma posição de identidade necessariamente envolve um apelo à autenticidade e à verdade enraizada na biologia.” Os seguintes versos comprovam esse não-questionamento: “Somente um ateu e darwinista / Pode entender a mulher. / O resto é ponto de vista, / Sem ter uma base qualquer.”

            Embora impute “conservadorismo” à psicanálise, um saber ateísta que também se fundamenta na ciência de Charles Darwin, Marcos de Farias Costa não deixa de lançar mão do conhecimento produzido por Freud quando cria alguns de seus versos. Num deles, por exemplo, ele não se furta de responder psicanaliticamente a célebre pergunta freudiana: “O que quer uma mulher?” Nem de conceber a homossexualidade feminina, também de modo psicanalítico, como um sintoma de imaturidade psicossexual: “O amor entre mulheres / É mais profundo / Porque no fundo elas querem / O ponto G do mundo. [...] Entra a língua na vagina / Como se fosse um consolo, / Como se fosse uma menina / Cortando uma fatia de bolo.” E complementa fingindo perplexidade: “Transam como gente grande, / Mesmo sem prepúcio ou glande!”

            Muito embora também execre as “línguas vituperinas do moralismo hipócrita, e do preconceito provinciano”, Marcos de Farias Costa, em sua pornopoética, não deixa de lançar mão da linguagem chula e negativamente estereotipada que este “preconceito” produz e estas “línguas” expressam.  Por exemplo: “No flagra, berra de espanto / O corno velho safado, / Pois pegou seu broto amado / Com a amiga num canto: / As duas gozavam tanto / Pareciam dois viados!”

            Mas essa linguagem é o que, na certa, inspira Marcos em seu trabalho “perverlírico” (para usar aqui uma expressão neológica dele próprio no livro Doce Estilo Novo [Barcarola, 2000, p. 57]) de imaginar as “Cenas da Vida Lésbica” na terra dos Marechais. Tal linguagem, portanto, é também um recurso criativo com o qual o poeta facilita ao leitor não-erudito o acesso ao conteúdo e significado do seu livro no contexto sócio-histórico mais amplo. Desse modo, este leitor não precisa tornar-se um cirurgião erotomaníaco ou o ET tarado, da revista Playboy, para “abduzí-lo”. Basta ser minimamente letrado e conectado aos dias de hoje. Dias de “pornopolítica”, como sugere o crítico de cultura Arnaldo Jabor (1940-    ), chamando a nossa atenção para as “paixões e taras na vida brasileira”. E isto enquanto repensa libidinosamente as categorias da literatura, em suas “crônicas afetivas”, para concluir: “Amor é prosa, sexo é poesia.”

TEATRO SOCIAL “SAFADO” ― Em Cantata Sáfica, a metáfora teatrológica já se encontra sinalizada no subtítulo: “Cenas da Vida Lésbica” (grifo nosso). Mas para exibir tais “Cenas” em seu livro ― uma obra de carpintaria literária quase tão cerebral quando a de um João Cabral de Melo Neto (1920-1999) ― Marcos de Farias Costa destrói, completamente, todas as coxias do teatro social. Em conseqüência, ele extingue, neste mesmo teatro da nossa histeria ou hipocrisia, a dialética entre a cena e os bastidores: “Duas fêmeas na cama, / Ambas experimentam / Tragédia-comédia-drama, / Mil paixões que as atormentam.”

           Nesses versos, o poeta parece percorrer não uma “trilha erótica”, mas sim os caminhos da oficialidade psiquiátrica do século XIX. No entanto, é assim que Marcos de Farias Costa passa a pertencer também ― como se fosse, repito, um Teseu incólume entre as bacantes ― “à safra rara daquelas artistas que”, segundo ele, “investigam o lodaçal dos sentimentos mais profundos, dentro de uma musicalidade que exalta e explora as paixões, revolvendo os sargaços do inconsciente.”

            É nessa passagem que “O franco-atirador” (ÁVILA, 2010), no mais profundo do eu-poético, transforma-se em “Afrodite Armada” (símbolo mítico da mulher “guerreira” ou com pênis), para afirmar e contestar, ao mesmo tempo ― numa formação de compromisso freudiana ou numa síntese hegeliana ― as lealdades e identidades políticas que sofreram mudanças depois do colapso do comunismo com sua ideia “mestra” de luta de classes. Ideia essa que cedeu lugar, como se pressupõe, as noções de “estilo de vida” e a emergência de “políticas de identidade” dos chamados “novos movimentos sociais”. Daí a substituição fantasística da comunista Albânia em “Lesbiânia”, resultante de uma conversão ou deslocamento ideológico que culminaria, na cena imaginária do poeta, no travestimento político do insular país de Fidel na antiga ilha de Safo.

            Note-se de passagem que a palavra “Hécuba” ― que denomina a velha rainha troiana, derrotada pelo tirano grego (e supostamente efeminado) Menelau, na lendária guerra de Tróia ―, no universo lingüístico de Cantata Sáfica, parece funcionar, portanto, como indicação simbólica ou semiótica dessa última conversão ideológica no sentido de um travestimento político. Um travestimento que mergulha a ilha de Fidel Castro no mesmo “lodaçal” que, em tempos imemoriais, os deuses poderosos mergulharam a Atlântica: continente, hoje (assim como a “verdadeira” imagem de Safo), só encontrado nos mapas de uma geografia interior.

            Não é preciso dizer aqui que o estilo de vida, a política de identidade e o novo movimento social que mais motivaram a “Cantata Sáfica” de Marcos de Farias Costa, também um socialista alagoano de longa data, foram todos lésbico-feministas. O que é preciso dizer aqui é que, para o poeta de Cantata Sáfica, esse processo sócio-histórico, no qual sem dúvida se experimenta “Tragédia-comédia-drama”, estaria simbolicamente referenciado no poema “Afrodite Armada”. Pois esta deusa representada assim estaria significando, em sua pornopoética, uma arquetípica projeção de sua “anima” (porção mulher) no sentido jungeano do termo. Daí o poeta afirmar numa referência implícita à guerra cultural liderada pela espartana Lisístrata (a personagem central da comédia de Aristófanes [c. 447 a.C. - c. 385 a.C.]): “É a guerra entre os sexos, / A mais cruel carnificina ― / E os desejos mais complexos / Do pênis e da vagina!”

            É interessante notar que nesse mesmo processo de “lesbianização” da cultura política, Urano ― um deus castrado e pai de Afrodite (ou Ishtar), a deusa do amor erótico ― estaria a representar o comunismo historicamente derrotado, pelo adeus à Lênin, em 1989. Daí porque, como seu pastor-voyeur no altar da “Igreja Lesbiteriana” de “Afrodite armada”, Marcos diz em sua pornoliturgia: “No capítulo da carne, páginas de gozo, / No versículo da pele, letras de engano. / Assim como a esposa deseja o seu esposo, / O poeta celebra o divino e o humano.”

            Nessa celebração pornopoética, as personagens humano-femininas, sejam reais ou fictícias, formam um grande elenco feminista que é composto por mulheres que, contudo e à duras penas, fizeram (e ainda fazem) uma história exclusiva das mulheres ― isto é: uma “herstory”, como se diz nos países de língua inglesa ― que vem sendo produzida, culturalmente, desde Safo às internautas “safadas” que o poeta libertino observa no ciberespaço pornô: “Eu vi uma safada / Sumir com os dedos e o punho / No rabo da namorada / Ficou mexendo lá dentro, / Foi com tudo até o centro / Como gozava a tarada!”

            É nesse “universo mudo” (e, portanto, sem fala nem falo) que este poeta reconhece ― solitário, resignado e sexualmente excitado ― a triste posição essencial do “macho” humano excluído: “Fêmea fodendo fêmea / É um tesão de se ver ― / O pau logo sai de cena / Esfolado de foder / Pois na seita sexual / Mulher só aceita outra igual.” Uma “seita” libidinosa e afrodisíaca na qual sem dúvida se parece dizer a Marcos, também um apaixonado pela música, que só lhe resta executar (sublimando) uma “Cantata Sáfica”... Pois quem sabe, um dia, a sua musicalidade “perverlírica” possa ser ouvida por “Safo em Jatiúca”? E, em conseqüência, encantar suas “meninas”... em Maceió?

 

REFERÊNCIAS

COSTA, Marcos de Farias. A curva da cintura. Gazeta de Alagoas. Maceió, 22 jan. 2011. Caderno B, p. B1- B2. Entrevista concedida a Ramiro Ribeiro.

COSTA, Marcos de Farias. Cantata sáfica: cenas da vida lésbica. 1ª ed. Maceió: Poligraf, 2011.

COSTA, Marcos de Farias. Doce estilo novo: antologias. 1ª ed. São Paulo: Barcarola, 2000.

COSTA, Marcos de Farias. O franco-atirador. Gazeta de Alagoas. Maceió, 04 out. 2009. Caderno B, p. B1, B2, B3, B5 e B6. Entrevista concedida à Janayna Ávila.

JABOR, Arnaldo. Pornopolítica: paixões e taras na vida brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

PAGLIA, Camille. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertitea Emily Dickinson. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PAGLIA, Camille. Provocações de uma lésbica pró-pênis. República, São Paulo, ano 4, n. 39, p. 56-61, jan. 2000. Entrevista concedida a Edney Silvestre.

PAGLIA, Camille.Vampes and tramps. New York: Vintage Books, 1994.

SONTAG, Susan. A vontade radical: estilos. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: um introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.) et al. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 10ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2011.

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
Maceió - AL

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