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Quando se tem insônia

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E naquela madrugada, sombria e chuvosa, estava Serena, deitada e medrosa em sua cama pequenina, mas que ainda lhe cabia. Seus olhos arregalavam temor, assustados olhavam para o teto sujo e mal cuidado de sua humilde casa. Sua barriga estava posta para cima o que te garantiria interessantes pesadelos aquela noite. Pensamentos lhe fumegavam e te tiravam a honra de um bom e calmo sono.

Deitada sobre seu colchão que nada lhe confortava, mas era o único que possuía, podia escutar sob sua janela, pessoas bêbadas que passavam a gritar quebrando o silêncio que tanto te atormentava. De certa forma aquilo te confortava e te assegurava companhias, mesmo que a metros de distância, mesmo que por minutos enquanto passavam distraídas pela sua rua.  

No entanto, mal se via, já estava novamente sozinha, como nunca estivera antes, como nunca antes se sentira. Estava tão sozinha como um cão na rua abandonado, mas estava tão sozinha dentro de sua própria casa, apenas Serena, insônia e seus velhos e cheirosos amigos livros que te rodeavam e nunca te abandonavam.

Até poderia apossar-se de algum deles, ou de todos eles, aquela madrugada sombria de maus pensamentos passava tão lenta... No entanto, nada mais poderia fazer quando as suas lembranças mais obscuras e os seus medos mais loucos teimavam em te cutucar naquele momento.

Algo como um grave erro no passado se avizinhava, a dor em saber que tempo não se volta e tudo que se fez, não se refaz, nem se renova, nem se muda, nem se troca. Assim fosse dormindo estava. Assim fosse despreocupada estava. Mas também, algo como as incertezas de um futuro mesquinho e cruel te apunhalavam sem dó nem piedade.

E serena, desesperadamente, sabendo que tempo futuro não a ti pertence, nem a ti te assegura confiança, nem a ti te prepara o que há de melhor nesta vida, pensa, amargura, vira para um lado, vira para o outro e reza com todas as suas forças e promete ao Deus dos céus, e ao seu próprio eu a começar a amar desde bem cedo, assim que o dia nasça, mesmo antes que o sol apareça;  a abraçar seus avós; obedecer seus pais; partilhar com seus irmãos.

Promete a começar a buscar seus sonhos, a acariciar o cachorro que encontrar na rua, a dar seu assento a um idoso. Tudo isso para recompensar seus erros, tudo isso para viver mais dignamente.

Era o medo de não mais ver o sol nascer diante de vossos olhos.  Era o medo de um mundo triste e rude que transbordava em seu coração às três da matina, aquele medo desastroso que se avizinhava somente naquele horário cruel, sem pessoas, sem vidas, apenas com Serena lutando com seu próprio sono.

Tudo teimava em deixá-la acordada, só para penar diante de uma dor mundana. Diante de todos os arrependimentos e angústias do que é temeroso. A vida era temerosa. Essa angústia que era humana, mais humana que o próprio humano que estava no ser de Serena não se findava, mas se sentia. Não se aquietava, mas se queimava. Que não sarava, mas só feria a alma, amolecia o corpo, adoecia a mente.

O silêncio que se apoderava de Serena, em meio a uma noite entediante, era cortado um vez pela tosse do vizinho, outra vez pelo gato no telhado, e aquele silêncio dava nó em sua garganta. E era aquele silêncio que dava nós em sua garganta que te fazia perceber como é triste ser simplesmente humana, não ser herói, aqueles de super poderes, de saber que um dia todos caem do cavalo e feio, de não ser imortal. 

Fazia-te perceber a tentativa de suicídio que fazemos todos os dias ao sair de casa, de agonizar por um pouco de vida, a dor de lembrar-se dos amigos perdidos.  E lembrar-se disso acompanhada de uma maldosa insônia era realmente algo que doía muito.

A esta altura, que não era menos que três da matina, depois de tantos pensamentos e lembranças catastróficos; após um medo enorme de não mais pertencer a este mundo, que não se orgulhava, mas que queria todo ele para si; após prometer amar mais cedo; a respeitar pai e mãe; a abraçar avós; a partilhar com os irmãos; a acariciar o cachorro que te acompanha na rua; a dar o assento a um idoso e buscar seus sonhos; após sentir o sofrimento que é ser gente e de ter um amor imensurável pelo que chamava de vida, o galo enfim canta...

E Serena pode ver uma pontinha do céu clareando na vaguinha do telhado de seu quarto. E seu coração enfim pode chorar aliviado e feliz. O galo cantou, o dia nasceu, e em silêncio, Serena amou a Deus e ao mundo e a todas as pessoas. E assim pode dormir. 

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Mariane Rodrigues ESCRITO POR Mariane Rodrigues Escritora
Maceió - AL

Membro desde Julho de 2010

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