MEMORABILIAS VIVARTO-CHALITISTAS: ou, os "ciscos" nos olhos de Pedro Lucena
Ricardo Maia
"O esquecimento é político.”
(Milan Kundera)
Nos últimos capítulos de sua história de vida, Clarice Lispector (1925-1977), uma escritora de origem ucraniana (mas, como “brasileira”, uma alagoana de adoção radicada no Rio de Janeiro) costumava passear quase todas as tardes no Jardim Botânico carioca. Lá, recolhia delicadamente folhas mortas que, na volta daqueles passeios, superlotavam sua bolsa. Percebendo esse comportamento ritualístico de Clarice, Olga Borelli, uma amiga e futura biógrafa da escritora, que todas às vezes a acompanhava carinhosamente nesses passeios, um dia lhe perguntou o que, para ela, significavam aquelas folhas... E a resposta de Clarice, como sempre, foi misteriosa e desconcertante: “Elas são o sinal do indizível.”
Diante da mostra-obra de Pedro Lucena (1977- ), um alagoano artista plástico que ora expõe na Pinacoteca universitária, essa definição clariceana talvez seja a chave para a compreensão do simbolismo de tantas folhas outonais que são projetadas, com lugubricidade alumbrante, nas paredes do referido espaço galerístico. Pois, ao devorá-las com a curiosidade eliciada pela misteriosa beleza da exposição, os espectadores que conhecem o desenvolvimento da história da arte visual em Alagoas – mais especificamente a produzida nos últimos cinqüenta anos – não conseguem deixar de ver que “o sinal” naturalógico das “folhas” de Lucena não são apenas um sintoma da visão naturalizadora dessa história. Ou a influência exclusiva do imaginário naturalista da Alagoas artística em sua obra. Elas são também, pressupostamente, uma dupla e “indizível” homenagem aos artistas alagoanos de duas gerações que antecederam a sua própria. Duas gerações que lutaram heroicamente, entre elas, pelo poder de visão e di-visão no/do campo artístico local; a saber: os “chalitistas” e os “vivartistas”[1]. O primeiro grupo, formado por artistas antiquaristas (isto é: medievalistas, neoclássicos e bellepoquistas) supostamente influenciados por Pierre Chalita (1935-2010), e, o segundo, por artistas modernistas liderados por Maria Amélia Vieira (1954- ) num grupo chamado “Vivarte”. Daí, como escreve o cineasta René Guerra (2012), que assina o texto de parede da exposição: “Ciscos”, é uma missa que celebra a “natureza”. Porém jamais a “cultura”, a não ser naturalizando-a através de uma “sabedoria” que nunca é produzida por “contrastes” dialéticos; mas, ao invés disso, por “trastes” mistificadores. Ou seja, intelectuais infantilizados (ou pseudointelectuais) que destituem “a ironia e a consciência do mundo” para dar o lugar destas, em nossa sociedade de classes, “ao mistério gentil, terno e natural” dos que se felicitam por locupletarem-se com o atraso provinciano. E o fazem, categoricamente, declarando a falência do “projeto do progresso” em contextos (como o alagoano) onde este sequer fora escrito.
Nesse sentido e de fato histórico, “‘Ciscos’ é uma renovação do pacto da fé” e não do pacto da razão iluminista. Um “pacto de fé”, aliás, “[...] no encontro daqueles que nunca poderiam habitar o mesmo mundo” social e natural de forma justa e igualitária. O mesmo mundo “[...] onde personagens singulares são cosntituídos da mesma matéria” (GUERRA, 2012), mas jamais pela mesma subjetividade ou dimensão simbólica.
Essa dupla e indizível homenagem de Pedro Lucena deve-se, por sua vez, à sua linguagem subliminar (ou subconsciente) que na certa é indicativa daquela espécie freudiana de retorno do recalcado que é, ele próprio, nossa “[...] estranheza infantil, sem proporção e sem sexo” – como bem diz ainda Renê Guerra (2012) no texto de parede da exposição. O retorno do recalcado sempre promove o encontro da identidade com a alteridade, um encontro que é sempre análogo a “uma relação entre o selvagem e o estrangeiro” (GUERRA, 2012). Por isso o afeto que se encerra no peito esquerdo de Pedro Lucena, em relação aos vivartistas e chalitistas, é tão ambivalente e profundo, em nível de investimento libidinal, que, não por acaso, parece estar representado no convite da mostra por um punhado de gravetos “ciscados” pelo artista sugerindo um coração em seu tradicional formato simbólico.
Portanto, na relação de Pedro Lucena com a memória inconsciente dos distintos legados chalitista e vivartista à sua geração, não se trata hoje de “esquecê-los”; mas, sim, de “in/quecê-los” (uso aqui um neologismo psicanalítico de Mezan [1989]) em sínteses perlaborativas. Sínteses estas que, na Maceió artística do “pós-tudo”, indicam nitidamente uma terceira via criativa – inclusive no sentido ideológico – através da qual este artista certamente construiu sua singular personalidade artística. Daí seus desenhos e pinturas, a nosso ver, serem uma espécie de memorabilias vivarto-chalitistas; isto é, representações não mais simplesmente chalitistas nem simplesmente vivartistas. “Quem quer que tenha estudado Filosofia da Arte”, escreveu certa vez a crítica de arte Gláucia Lemos, “terá tomado conhecimento de que a personalidade é a mais importante característica para definir um artista.”
Entretanto, devido à sua beleza sublime a irradiar uma aura infantilista, derivada do clima fabuloso dos contos de fadas, a personalíssima exposição de Pedro Lucena tende bastante a parecer “alienada”. Isto porque, pressupostamente, não faria referência à realidade social alagoana onde foi produzida. Mas essa observação é decerto equivocada e superficial, pois partiria apenas de espectadores “críticos” sem sólida base filosófico-científica. Contra-argumentando com estes espectadores, poderiamos citar o seguinte trecho da Teoria Estética do frankfurtiano Theodor Adorno (1970, p. 16): “Mesmo a obra de arte mais sublime adota uma posição determinada em relação à realidade empírica, ao mesmo tempo que se subtrai ao seu sortilégio, não de uma vez por todas, mas sempre concretamente e de modo inconscientemente polêmico contra a sua situação a respeito do momento histórico.”
Sendo assim, poderíamos perguntar: qual seria então a exata posição adotada pela obra artística de Lucena em relação à realidade empírica? E qual seria, mais especificamente, essa realidade?
À esta pergunta, poderíamos responder hipoteticamente o seguinte: A realidade empírica, ou histórica, a qual a obra artística de Lucena se relaciona é, sem sombra de dúvida, a alagoana. Mais exatamente a que é produzida, sócio-históricamente, no campo específico da arte visual em Alagoas. Mas essa posição é determinada de modo inconsciente, portanto, à revelia da consciência desse artista. Pois ao sub/trair-se de modo inconsciente ao “sortilégio” dessa realidade específica, por desdenhá-la pós-modernamente (ou seja, de modo anistórico), Lucena polemiza, sem perceber, contra a própria experiência social vivida por ele. E, por conseguinte, contra o momento histórico da produção de sua obra. Aliás, um momento histórico paradoxal que é, de fato subjetivo, aquele de um ambivalente reconhecimento dos legados vivartista e chalitista.
Vem daí, na certa, a conectividade ou interação crítica de sua arte com a realidade social onde ela foi produzida. O problema é que a linguagem utilizada nessa interação é radicalmente metafórica, portanto, eivada de sutilezas simbólicas. Linguagem típica, como sabemos por Jameson ( ) e Deleuze ( ), de um inconsciente político que protesta. Não é por acaso que já no título da exposição (“Ciscos”) de Lucena se pode perceber, por exemplo, este inconsciente se estruturando como uma linguagem repleta de alusões implícitas que, sem dúvida, é sintomática de um modo de “[...] fazer história por meio” daquela “repressão, de algum modo, interessada” (DERRIDA em entrevista a RONSE, 2001, p. 13).
Etimologicamente, a palavra “cisco” é originada do latim “cinisculu”. O Aurélio (1986, p. 412) nos oferece quatro acepções dela. Através destas, tentaremos descobrir, na exposição de Pedro Lucena, as possíveis conexões de suas obras com o contexto histórico da arte em Alagoas. Mais exatamente, com as práticas e representações do referido contexto nos anos 1980-90 do século passado. Aqui, então, é preciso que se diga que tais acepções do termo “Ciscos” constituirão pontos de apoio para as nossas inferências no processo de produção discursiva. Vejamos a seguir:
“1. Pó ou miudezas de carvão.” No simbolismo organizacional da mostra de Lucena, essa acepção seria indicativa do seu finalismo pós-modernista. Um finalismo profundamente lúgubre que a conectaria com o ritual anarco-funerário para a cremação pulverizadora da “fase morta da pintura alagoana”. Este ritual, uma provocação dirigida obviamente aos chalitistas, foi promovido pelos vivartistas/cruzadistas, na noite de 27 de julho de 1987, no teatro Deodoro. Na ocasião, estes artistas vanguardistas lançaram o catálogo da 1ª Jornada das “Cruzadas Plásticas”. Neste catálogo, intitulado “A nova e a novíssima pintura alagoana”, o vivartista/cruzadista Ricardo Maia (1987, p. s/n) lançaria o conceito modernista de “vanguarda-caeté”.
“2. Lixo ou varredura.” Se em Portugal e no nordeste brasileiro a idéia de “ciscos” é livremente associada à multidão – ou seja, à “gente como cisco” – ganhando assim uma dimensão subjetiva e, portanto, humana e/ou cultural, podemos pressupor aqui que, na dimensão poética da exposição de Lucena, a palavra que titula a referida mostra é metáfora de seres humanos massificados, e, por isso, desvalorizados como indivíduos. “Vidas desperdiçadas”, como diz o sociólogo Zygmunt Bauman (2005; 2008),” pois “varridas”, impiedosamente, como se fossem “refugo humano”, para as margens de uma sociedade cada vez mais individualizada. Uma situação que, em Alagoas ou mesmo na Maceió artística, tanto os chalitistas quanto os vivartistas (e, em consequência, suas respectivas obras) se vêem ameaçados por ela.
“3. Ramos, gravetos, etc.; arrastados pelas enxuradas;” A exemplo interessante do que falamos no parágrafo acima, esta acepção sem dúvida nenhuma evocaria o pânico simbólico de Benedito Ramos (1988, p. 13, grifo nosso), um pintor de figurativismo medievalista, diante do “aluvião de mudanças” que, segundo ele em fins dos anos 1980, “[...] vem tragando cada vez mais as referências figurativas de nossos artistas.” Essa “enxurrada” transformadora que naquela época revolucionou o campo artístico alagoano das artes visuais, foi gerada, de acordo ainda com Ramos (1987), por “[...] uma maior efervescência cultural acontecida na espontaneidade e nos arrufos de uma geração mais jovem e desvinculada dos valores sociais. Tudo isto somado à maior freqüência de exposições de artistas de outros Estados e uma maior atuação da crítica, numa postura coadunada ao profissionalismo.” E acrescenta: “O resultado foi o aparecimento de segmentos alternativos, sobrepujando a experiência curricular e a estabilidade do mercado. Esta geração passou a perceber e a vivenciar uma realidade acima da ‘Liberdade Provincial’, arriscando-se heroicamente, sem os ‘louros’ desta aventura.” (RAMOS, 1987). E arremata em conclusão parcial: “Não é fácil decompor uma estrutura solidamente plantada por mais de 87 anos.” (RAMOS, 1987)
“4. Bras. Leve partícula de qualquer corpo caída especialmente no olho”, que, no norte e nordeste brasileiros – e também em Portugal – é chamado de “argueiro”. Esta acepção é sem dúvida aqui a chave principal no nosso projeto interpretativo da exposição de Pedro Lucena, e, por isso mesmo, ela já nos remete ao subtítulo e a certos trechos deste ensaio dispensando nele nosso comentário a seu respeito.
No entanto, é interessante notar, sobretudo no contexto do nosso argumento crítico, que a primeira das duas sílabas da palavra “cisco” – isto é, seu prefixo “CIS” – significa, segundo o Aurélio (1986, p. 412), “posição aquém”. Ou seja, a mesma posição geracional “cisandina” (ou à “cisbordo”) que os chalitistas e vivartistas ocupam, na linha do tempo-histórico, em relação à geração de artistas à qual Pedro Lucena pertence. Daí o nosso argumento defendido aqui de que os “ciscos” de que nos fala Lucena são, inclusive e sobretudo, na realidade psíquica de sua obra, MEMORABILIAS VITARTO-CHALITISTAS do inconsciente social da arte em Alagoas. Um inconsciente que, sendo político (como já observamos), parece retornar hoje, através de sua criatividade, como memórias perturbadoras. Ou seja, “argueiros” nos olhos do artista...
Visto que o uso das expressões verbais que compõem o título deste ensaio (“MEMORABILIAS VIVARTO-CHALITISTAS”) é muito raro, e por isso seus significados são desconhecidos da maioria, aqui vale um esclarecimento. Pois bem: quanto à primeira expressão do título, trata-se de um termo latino que tem variada aplicação e, literalmente, significa “coisas que servem para serem lembradas”; ou seja: tudo o que teve um significado importante para um sujeito e pode, por este ou outrem, ser recuperado numa memorabilia, ou recolhimento de memórias, experiências pessoais, obras realizadas, conhecimentos adquiridos, etc. que de alguma forma os marcou (CEIA, 2010, pág. eletrônica). O ato de recolher dados da memória, para serem transformados em arte, é missão do “espírito historiográfico”. Este, para tanto, mergulha através de dados registrado do passado, e ao agir no presente “como um instrumento de alteração e recriação imaginária ou fatual desse passado, para além da sua simples reconstrução e preservação”, o mencionado espírito “pode produzir a modificação do passado, como forma de crítica a factos ou comportamentos que se julgam merecedores de uma revisão judicativa.” (CEIA, 2010, pág. eletrônica). Já a segunda expressão (“vivarto-chalitista”), uma palavra composta, refere-se obviamente a uma formação de compromisso entre as ideologias estéticas do “vivartismo” – daí o termo “vivarto-” – e do “chalitismo”. A referida expressão composta não é minha, foi criada pelo semioticista Philadelpho Menezes (1960-2000), em 24 de novembro de 1999, quando este semioticista, atendendo ao meu pedido de autógrafo, escrevera uma dedicatória para mim em seu livro A Crise do Passado: modernidade, vanguarda e metamodernidade (Ed. Experimento, 1994; 256 p.). Na dedicatória – produzida pouco depois da defesa de minha dissertação de Mestrado, na PUC-SP, onde Philadelpho havia feito parte da banca examinadora – ele diz: “A Ricardo, vivarto-chalitista? Um abraço de parabéns. Philadelpho Menezes. SP, 24/11”... esquecendo-se de completar a datação.
Mas voltando à exposição de Pedro Lucena, inaugurada quase exatos treze anos depois (23/11/2012) desta dedicatória: como localizar então essas MEMORABILIAS, no conjunto das obras expostas por este artista na Pinacoteca Universitária? Obviamente, lendo as “imagens ingênuas e quase infantis” (GUERRA, 2012) produzidas por Lucena para a referida mostra. Porém, ao mesmo tempo, buscando identificar nelas os signos e símbolos indicativos dos valores estéticos tanto dos “vivartistas” quando dos “chalitistas”. O que, aliás, tentaremos fazer em outro texto ou na próxima versão (ampliada e revisada) deste ensaio.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários. Website desenvolvido por: Made2Web, 2010.
DERRIDA, Jacques. Posições. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2ª ed. revisada e aumentada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GUERRA, Renê. “A obra de Pedro Lucena sempre foi...”. Texto de parede da exposição “Ciscos” de arte visual. Maceió: Pinacoteca Universitária, 2012.
LEMOS, Gláucia. Arte em Alagoas – 2ª parte. Gazeta de Alagoas. Maceió, 6 abr. 1983. Serviço, p. 9.
MAIA, Ricardo Ferreira de Souza. Um grupo chamado Vivarte: um estudo dos espaços de autoposicionamentos mini-políticos na organização retrospectiva do movimento vivartista (1984-1997). São Paulo, 1999. 164 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). PUC – SP.
MAIA, Ricardo. “Mamélia”, a vivartista: Pinacoteca abriga a nova exposição da artista plástica Maria Amélia [Vieira]. O Jornal. Maceió, 13 maio 2004. Caderno Dois, p. B1.
MAIA, Ricardo. As regras da arte em Alagoas: um modelo estrutural bipolar da Maceió-artística (1984-1999). Cadernos de administração, Maceió, ano I, n. 2, p. 159-175, jul./dez. 2001.
MENEZES, Philadelpho. A crise do passado: modernidade, vanguarda e metamodernidade. São Paulo: Experimento, 1994.
MEZAN, Renato. Esquecer? Não: in-quecer. In: RODRIGUES, Heloísa F. et al. Tempo do desejo: sociologia e psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1989
RAMOS, Benedito. Edgar Bastos: um aluvião de mudanças. Gazeta de Alagoas. Maceió, 20 mar. 1988, p. 13.
RAMOS, Benedito. “Uma cortina entre dois mundos”. Exposição em artes visuais de Reinaldo Lessa. Maceió: Sucata Decorações, 1987.
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[1] Sobre essas categorias identitárias no campo alagoano das artes visuais dos anos 1980, ver MAIA (1999; 2001 e 2004).
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