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Dona Eulália e o tempo

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          Havia uma velha senhora que todo o dia ao entardecer, geralmente após a rotina de seus trabalhos diários, debruçava-se sobre o muro frágil de sua vida, amontoada agora sobre tijolos rotos que a qualquer momento poderiam desmoronar. Ali, tranquilamente fumava seu cigarro e tragava satisfeita a fumaça que lhe mantinha viva, impedindo-a de esfumaçar-se na solidão das horas.

       Certa vez, eu e minhas irmãs resolvemos visitá-la, e fomos gentilmente convidadas a entrar em sua casa; lá eu percebi que um incoveniente hóspede esparramava seus galhos secos em direção a todos os cômodos da casa, nas escadas estreitas, nos livros empoeirados enfileirados na estante, no retrato amarelado de um homem de meia idade, cuja moldura decrépita estava pendurada na parede da sala.

          Feliz por receber nossa visita ela nos falou com orgulho sobre o seu falecido marido, uma vez ou outra colocava a mão nopeito e suspirava, aos noventa e nove anos, praticamente cega, sua maior alegria consistia em pagar a última prestação de uma dívida deixada por ele, embora isso lhe significasse penosamente a despensa e os pratos vazios. Enquanto ela falava eu examinava a casa, o teto estava repleto de teias de aranhas, o mofo descia pelas paredes, o piso antigo era decorado com flores encardidas, os móveis eram escuros e olhavam-nos como crianças tímidas, pareciam querer falar, como se o tempo lhes concedesse vida. A porta do quarto estava entreaberta, a cama forrada parecia uma mãe gorda de braços estendidos, aguardando ansiosa o retorno dos filhos e um par de chinelos descansava no canto. Era uma casa de vovó, pequena e acolhedora, com cadeira de balanço, colcha de retalhos e almofadas de crochê cheirando a naftalina... A criança da cesta de doces não apareceu, penso que ela cresceu, só não entendo porque esqueceu o caminho da casa da avó.

         O lobo rondava o sossego daquele lugar disfarçado na figura tenebrosa do tempo, eu ouvia seu uivo feroz e via a marca de suas garras sobre aquele rosto centenário. O relógio não funcionava, os ponteiros pararam em um tempo qualquer das lembranças que ela insistia em retirar de sua grande sacola, às vezes, em sua narração confudia o passado e o presente, acho que para ela a essa altura da vida isso era um detalhe sem muita importância. Confesso admirada que ela foi uma anfitriã maravilhosa! Tudo o que possuía de mais precioso era o passado, e foi generosa conosco compartilhando-o satisfeita, ofertando-o com suas mãos brancas e ressecadas.

           Outra tarde passei lá novamente, e parei em frente ao portão branco, só por curiosidade e encanto, encantada pelo tempo. Tudo estava dormindo... As cortinas dormiam encostadas na parede, as almofadas dormiam sobre o sofá, o gato dormia no tapete. A casa dormia como dormia sua dona, cochilando ao final da tarde em sua cadeira de balanço sonolenta. Apenas o tempo, seu hóspede inconveniente mantinha-se acordado  de olhos bem abertos, e às vezes, entre um cochilo e outro, a velha senhora abria um olho na esperança que ele também tivesse adormecido.

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Cleide Vanderley ESCRITO POR Cleide Vanderley Escritora
Maceió - AL

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