PÁGINAS INAUDITAS - Tchello d'Barros
PÁGINAS INAUDITAS
Tchello d’Barros
Tudo aconteceu numa dessas tardes cálidas, que se arrastam sobre as linhas do horizonte e em cumplicidade com o relógio preguiçoso, demoram a encontrar o crepúsculo. As próprias nuvens, estáticas, parecem fazer parte de um quadro renascentista, como uma obra de Velasquez. Na biblioteca pública, pesquisava a origem dos Sonetos, e entre velhos e grossos volumes de dicionários, livros de poesia européia e outros de teoria literária, encontrava aqui e ali algumas pistas sobre os primórdios dessa forma fixa de poema que sobrevive às inovações vanguardistas e permanece como a mais conhecida entre literatos e apreciadores de um bom poema.
Os estudantes que freqüentavam a biblioteca naquela tarde pareciam interessados em livros sobre sonhos, astrologia e biografias de Raul Seixas, Che Guevara e Buda. Algumas senhoras perguntavam por novidades sobre auto-ajuda, inteligência emocional e neuro-lingüística. Um escritor da cidade perguntou pelas obras completas de Jorge Luís Borges, parece que saiu decepcionado. Além desses diálogos entrecortados, era possível ouvir ainda alguns cochichos entre os alunos, uma ou outra textura sonora de livros sendo folheados, a máquina de fotocópia reproduzindo as idéias dos homens e mais alguns sonidos de enciclopédias sendo desencaixotadas. E assim a tarde urdia o tempo languidamente, macilenta e despreocupada.
Por entre as estantes, procurando agora um volume das obras de Petrarca, tive a impressão de ouvir um cochicho bem baixinho, quase inaudível. Olhei ao redor, por entre os livros e nada, não havia ninguém por ali. De repente, pude ouvir outra vez umas vozes, que pareciam vir de algum lugar próximo, como se viessem de dentro dos livros. Apurando a audição, percebi que o diálogo abafado vinha de dentro de nada menos que um exemplar do “Don Quixote.” E o mais incrível, era alguém lendo, ou recitando, o célebre ‘discurso das armas e das letras’ que o personagem de Cervantes tão bem deixou gravado para as futuras gerações. Primeiro imaginei algum fantasminha letrado dentro do livro, talvez algum membro da sociedade dos poetas mortos. Então lembrei que sequer acredito em fantasmas. Depois pensei que fosse alguma pegadinha, já que vivemos numa era com câmeras escondidas por toda parte. Finalmente, vencido pela curiosidade, peguei muito discretamente o livro, olhando de soslaio pra ver se ninguém estava me chamando de louco.
Desconfiado, abri as primeiras páginas, só vi uma breve biografia do bardo espanhol, folheei outras e aí estava uma gravura de Doré mostrando um Sancho muito bonachão. Somente na segunda parte é que finalmente desvendei o mistério: Tudo não passava de duas pequenas traças conversando, pois tinham chegado a mesma página por caminhos diferentes. E estavam ali as duas discutindo as desventuras quixotescas quando resolvi ouvir um pouco mais o diálogo. A mais gordinha delas argumentava que gostava dos livros clássicos, primeiro porque pouca gente emprestava e depois porque o papel era de excelente qualidade, macio, e a tinta tinha um pigmento que temperava tudo com um sabor especial. Já a outra tracinha assinalava sua preferência por jornais, especialmente colunas sociais, pois estas tinham mais figurinhas. A mais fofinha delas não deixou por menos, ensinando que nos clássicos o papel era mais bonito pois tinha uma tonalidade amarelada. A outra considerou que isso não era vantagem pois nas fotos das colunas, sorrisos amarelos era o que não faltava. Eu já ia quase entrando na conversa quando decidi deixar por isso mesmo, apesar de ser uma cena tão rara. Ainda deu tempo de ouvir uma traça fazer troça dizendo que cena rara mesmo seria ver aqueles colunáveis lendo clássicos como esse...
www.tchello.art.br
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Tudo aconteceu numa dessas tardes cálidas, que se arrastam sobre as linhas do horizonte e em cumplicidade com o relógio preguiçoso, demoram a encontrar o crepúsculo. As próprias nuvens, estáticas, parecem fazer parte de um quadro renascentista, como uma obra de Velasquez. Na biblioteca pública, pesquisava a origem dos Sonetos, e entre velhos e grossos volumes de dicionários, livros de poesia européia e outros de teoria literária, encontrava aqui e ali algumas pistas sobre os primórdios dessa forma fixa de poema que sobrevive às inovações vanguardistas e permanece como a mais conhecida entre literatos e apreciadores de um bom poema.
Os estudantes que freqüentavam a biblioteca naquela tarde pareciam interessados em livros sobre sonhos, astrologia e biografias de Raul Seixas, Che Guevara e Buda. Algumas senhoras perguntavam por novidades sobre auto-ajuda, inteligência emocional e neuro-lingüística. Um escritor da cidade perguntou pelas obras completas de Jorge Luís Borges, parece que saiu decepcionado. Além desses diálogos entrecortados, era possível ouvir ainda alguns cochichos entre os alunos, uma ou outra textura sonora de livros sendo folheados, a máquina de fotocópia reproduzindo as idéias dos homens e mais alguns sonidos de enciclopédias sendo desencaixotadas. E assim a tarde urdia o tempo languidamente, macilenta e despreocupada.
Por entre as estantes, procurando agora um volume das obras de Petrarca, tive a impressão de ouvir um cochicho bem baixinho, quase inaudível. Olhei ao redor, por entre os livros e nada, não havia ninguém por ali. De repente, pude ouvir outra vez umas vozes, que pareciam vir de algum lugar próximo, como se viessem de dentro dos livros. Apurando a audição, percebi que o diálogo abafado vinha de dentro de nada menos que um exemplar do “Don Quixote.” E o mais incrível, era alguém lendo, ou recitando, o célebre ‘discurso das armas e das letras’ que o personagem de Cervantes tão bem deixou gravado para as futuras gerações. Primeiro imaginei algum fantasminha letrado dentro do livro, talvez algum membro da sociedade dos poetas mortos. Então lembrei que sequer acredito em fantasmas. Depois pensei que fosse alguma pegadinha, já que vivemos numa era com câmeras escondidas por toda parte. Finalmente, vencido pela curiosidade, peguei muito discretamente o livro, olhando de soslaio pra ver se ninguém estava me chamando de louco.
Desconfiado, abri as primeiras páginas, só vi uma breve biografia do bardo espanhol, folheei outras e aí estava uma gravura de Doré mostrando um Sancho muito bonachão. Somente na segunda parte é que finalmente desvendei o mistério: Tudo não passava de duas pequenas traças conversando, pois tinham chegado a mesma página por caminhos diferentes. E estavam ali as duas discutindo as desventuras quixotescas quando resolvi ouvir um pouco mais o diálogo. A mais gordinha delas argumentava que gostava dos livros clássicos, primeiro porque pouca gente emprestava e depois porque o papel era de excelente qualidade, macio, e a tinta tinha um pigmento que temperava tudo com um sabor especial. Já a outra tracinha assinalava sua preferência por jornais, especialmente colunas sociais, pois estas tinham mais figurinhas. A mais fofinha delas não deixou por menos, ensinando que nos clássicos o papel era mais bonito pois tinha uma tonalidade amarelada. A outra considerou que isso não era vantagem pois nas fotos das colunas, sorrisos amarelos era o que não faltava. Eu já ia quase entrando na conversa quando decidi deixar por isso mesmo, apesar de ser uma cena tão rara. Ainda deu tempo de ouvir uma traça fazer troça dizendo que cena rara mesmo seria ver aqueles colunáveis lendo clássicos como esse...
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