Tema Acessibilidade

DISCUTINDO AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO E FAMÍLIA

• Atualizado

Marcus Swell Brandão Menezes

 

 
 
RESUMO
Este artigo tem por proposta tecer algumas considerações sobre o enfoque dado às mulheres nas políticas públicas de combate à pobreza. De maneira geral estes programas tem centrado suas ações na família e nos papeis tradicionais das mulheres na esfera doméstica, reforçando-os e pouco contribuindo para a superação das desigualdades de classe e gênero. Para tanto apresentaremos as principais críticas feitas a estes programas a partir do enfoque de gênero, trazendo algumas reflexões sobre  a necessidade da inclusão de uma perspectiva de gênero nas políticas públicas que busquem a equidade nas relações entre homens e mulheres. 
Palavras-chaves:familyprograms to combatpoverty,gender andtargeted policies.
ABSTRACT
This articleproposessome considerations aboutthe emphasisgiven to womenin public policiesto combat poverty. In generalthese programshavefocusedtheir actionson family andtraditional rolesof womenin the domestic sphere, strengthening them andcontributinglittleto overcome theinequalitiesof class and gender. For this purposewe introduce themaincriticisms ofthese programsfroma gender perspective,bringingsome reflections onthe need forinclusion ofagender perspectivein public policiesthat seekequityin relationships between menand women.
Keywords: family, combat programs the poverty, gender and focalized policies.



1. INTRODUÇÃO

 

Uma análise mais aprofundada sobre o papel das mulheres nas propostas de políticas publicas de combate à pobreza, no contexto do neoliberalismo e o papel assistencial das mulheres no âmbito da família tanto nas abordagens neoliberais como no chamado estado providência, mostram a dimensão política presente na relação público/privado e, como a inclusão  de gênero nestas abordagens não se reduz a um fato circunstancial e periférico.
Como nos mostra Faria e Nobre (1999), os governos neoliberais não são neutros em relação ao gênero. Têm um discurso voltado à promoção da equidade, mas sua ação apenas continua a política de atuar somente nas situações de extrema pobreza, vinculados a financiamentos externos interessados nessa política.
A principal estratégia é a chamada privatização da família ou a privatização da sobrevivência da família, propondo explicitamente a transferência de responsabilidades que deveriam ser assumidas pelo Estado às unidades familiares.
Há uma valorização da família como lócus privilegiado de superação das seqüelas da questão social por um estado que pouco tem priorizado os gastos com o social e, pouco tem implementado em termos de política social e estratégias de superação das desigualdades sociais. Há um reforço as idéias próprias do senso comum nas quais a culpada é sempre a família. É, portanto, necessário investir na família. Nada mais simplista e funcionalista. Nada mais adequado a um Estado, no caso brasileiro, que ignorando a proposta de Seguridade Social conquistada na Constituição de 1988 tem por marca a refilantropização das políticas sociais e a privatização da assistência social.
São políticas de caráter focalizado e fragmentadas centradas nos papéis tradicionais da mulher dentro do lar e da família. A grande maioria das políticas, programas e projetos dirigidos às mulheres no mundo inteiro, enfocam seus papéis de esposas e mães dentro da divisão sexual do trabalho e buscam enfrentar necessidades voltadas à esfera doméstica, mas que, na verdade pouco contribui para a conquista do empoderamento e autonomia das mulheres.
O enfoque prioritário é o papel das mulheres na esfera doméstica relacionado fundamentalmente a maternidade. Assim as mulheres são tratadas como receptoras passivas mais que participantes ativas sendo a criação dos filhos seu papel mais efetivo. Através do papel de mãe, a mulher de baixa renda tem sido um dos alvos primordiais para melhorar o bem estar da família, especialmente das crianças (Moser, 1986). 
A premissa básica é que não só as mulheres são mais confiáveis como mães, como são mais confiáveis que os homens na aplicação correta do beneficio e tão ou mais capazes do que eles, garantindo assim a eficácia dos programas.
Para Lavinas (1997:179), “através de um atendimento específico as mulheres pobres, poder-se-ia, graças à política de cunho assistencialista muito focalizada, reduzir os efeitos perversos do ajuste aos quais, por assim dizer não se poderia escapar”. Continua a autora no mesmo comentário:

 

Duas linhas foram privilegiadas: a de elevação de renda das mulheres, através de programas de geração de renda com base nas atividades tradicionalmente desenvolvida por mulheres (rendeiras, bordadeiras, doceiras...) e o que foi chamado de busca da elevação da produtividade e eficiência do trabalho feminino (aplicaram-se princípios do ajuste produtividade mais alta e eficiência – ao trabalho não remunerado das mulheres, mobilizando-as, através de um uso mais direcionado do seu “tempo disponível”, para mutirões comunitários com fins diversos, de forma a que contribuíssem diretamente para uma adesão maior de todos).

 

Para Lavinas (1997, p.179), as carências consubstanciais à condição feminina, passam a instrumentalizar políticas que, mais uma vez, têm por objeto as mulheres e não as relações homem-mulher e seus antagonismos, “políticas essas, além de tudo, absolutamente ineficientes e malsucedidas no alcance de seus objetivos. Julga-se que se pode ampliar o espaço da cidadania feminina tão-somente atendendo a carências construídas sexuadamente”.
Como muito bem questionam Nobre e Faria (1999), que cidadania é essa, em que para as mulheres pobres servem migalhas, mesmo assim sempre vinculadas à existência dos filhos? Onde está sua emancipação, sua autonomia e o reconhecimento da maternidade como função social?

2. DESENVOLVIMENTO


A principal estratégia das políticas focalizadas centradas nas famílias tem sido a entrega direta de bens ou atividades de capacitação que reforçam as habilidades consideradas adequadas às donas de casa e mães não trabalhadoras. Exemplos de programas sãos o de provisão direta de alimentos, os programas de combate à desnutrição, os programas de planejamento familiar, os programas de erradicação do trabalho infantil, o programa bolsa-família, programas que exigem que seja a mãe a responsável pelo recebimento do beneficio.
Além disso, são as mulheres, a partir do papel de mãe, que tem que estar presentes em todas as atividades previstas nestes programas, como por exemplo, as de caráter sócio-educativos, além de serem as principais responsáveis pelo cumprimento dos critérios de permanência no programa, caso do Bolsa-família, no qual as crianças não podem abandonar os estudos e nem se ausentar da escola. Não podemos deixar de lembrar  o crescimento das famílias chefiadas por mulheres e do aumento da pobreza destas famílias, em função da condição das mulheres no mercado de trabalho, principalmente as pobres, aumentando ainda mais a condição de vulnerabilidade e a sobrecarga de responsabilidades destas.
É o momento de nos perguntar de que família esses programas falam, será aquela família das propagandas de margarina, com papai, mamãe, casal de filhos, às vezes avós simpáticos, com as mulheres representando a mãe que cuida, traz harmonia e encara com paciência e sabedoria os conflitos e diferenças, ou a mulher, mãe chefe de família, mais pobre entre os pobres, que sofre violência doméstica, encara a jornada extensa e que o corpo não lhe pertence. Entre esses dois extremos há outras dezenas de composições familiares que aqui poderíamos citar.
É importante assinalar, como nos mostra Zaretsky (1976), que, enquanto a família foi uma unidade produtiva baseada na propriedade privada, os seus membros consideravam que a sua vida doméstica e as suas relações pessoais estavam enraizadas no trabalho mútuo. A proletarização separou a maior parte das pessoas ou famílias da posse da propriedade produtiva, fazendo prevalecer à idéia de família como domínio separado.
A rígida divisão de papéis e trabalho, opondo a esfera produtiva à esfera reprodutiva, coloca no senso comum como modelo de família “normal”, os homens como provedores e as mulheres como responsáveis pela esfera doméstica, numa composição familiar onde moram na mesma casa: pai, mãe, e preferencialmente, nos dias atuais, dois filhos. Sabemos, sem precisar recorrer a nenhum estudo mais aprofundado, que este modelo não corresponde à realidade tanto no que diz respeito aos arranjos familiares quanto ao que concerne à manutenção econômica. Nunca é demais lembrar também que o modelo estereotipado invisibiliza as situações de conflitos relacionadas à violência sexista.
Segundo Moser (1986), este modelo abstrato, estereotipado, tem como principal problema o fato de que não reconhece que a situação das “donas de casa” nas camadas mais pobres não é homogênea em termos de estrutura familiar e, mesmo que a família nuclear seja o modelo predominante, isto não implica que não coexistam outros  tipos de família. Moser chama a atenção para as famílias “encabeçadas” por mulheres. Nelas o homem está ausente, seja temporariamente (migração), seja de forma permanente (separação, morte, abandono). No nível mundial, estima-se que um terço das famílias tem a mulher como chefe do lar.
Moser nos alerta para o fato de que as condições econômicas destas mulheres variam consideravelmente, dependendo de uma diversidade de fatores como estado civil, acesso a funções remuneradas e, finalmente, a composição da unidade doméstica.
 A realidade tem mostrado que, se por um lado, cresce o número de domicílios nos quais a mulher tem papel fundamental na manutenção econômica, com ou sem a presença do marido/companheiro, por outro lado, ela ainda é na maioria das casas, a responsável pela esfera doméstica. Esta situação se agrava entre os mais pobres, pela absoluta de falta de acesso a formas de apoio como creches, escolas em período integral, sistema de saúde de qualidade, moradias dignas e demais fatores que poderiam aliviar a sobrecarga de trabalho doméstico. Estas sim poderiam ser políticas importantes de apoio às famílias e que teriam um grande impacto na vida das mulheres numa perspectiva de gênero.
Mas é necessário distinguir entre o que são programas que tem por alvo preferencial as mulheres e o que são programas com perspectiva de gênero. Não é o fato das mulheres serem centrais nestes programas, que faz com que haja uma perspectiva de gênero ou enfoque de gênero.
Antes de comentar esta distinção, ressaltamos que embora o conceito de gênero tenha ganhado força e destaque enquanto instrumento de análise das condições das mulheres ele não deve ser  utilizado como sinônimo de “mulher”. O conceito é usado tanto para distinguir e descrever as categorias mulher e homem, como para examinar as relações estabelecidas entre elas e eles. Queremos, no entanto, esclarecer que nossa proposta neste texto é enfocar particularmente a necessidade de políticas favoráveis às mulheres no sentido tratado por Silveira (2003).
A autora aponta alguns equívocos ou desvios construídos a partir da noção de “transversalidade de gênero”.

A incorporação da transversalidade de gênero entendida sem um coração que pulsa, ou dito de modo mais teórico, sem o sujeito da transformação das desigualdades de gênero leva a equívocos, como a “leitura” de que se gênero diz respeito ao masculino e ao feminino, as políticas devem sempre abordar os homens e as mulheres ao mesmo tempo e essa compreensão deslegitimaria ações políticas para mulheres, como se fossem resquícios de uma compreensão deficitária da questão das relações de gênero (Silveira, 2003, p.22).

Silveira (idem) continua em seu argumento afirmando que é função de um Estado democrático elaborar políticas públicas que reconheçam a desigualdade de poder entre homens e mulheres,

Portanto, é legitimo atuar pensando em uma lógica de políticas públicas que pesam sempre no impacto diferenciado para homens e mulheres, mas que também reconheça legitimidade nas ações voltadas para ao fortalecimento das mulheres que, enquanto coletivo social, estão me condições subordinadas na sociedade (ibidem).

Retomando a reflexão sobre a perspectiva de gênero, afirmamos que esta implica em ações que levem em conta a realidade das mulheres e sua condição de desigualdade; que modifiquem as desigualdades de gênero. Implica também como sugere Soares (2002) integração dos distintos âmbitos da ação municipal e requer novas metodologias de intervenção, principalmente as que favoreçam a participação.  Implica em indicadores que mostrem: houve transformações na divisão do trabalho doméstico, as meninas na família deixaram de ser responsáveis pelo trabalho doméstico e cuidado dos irmãos menores; diminuiu a violência doméstica; houve a capacitação profissional, o acesso a trabalho e geração de renda; possibilitou a complementação da escolarização; possibilitou um cuidado com a saúde sexual e reprodutiva; contribuiu para sua autonomia; contribuiu para a recuperação da autoestima; diminui o estresse e a depressão. É importante destacar que a questão dos indicadores é outro ponto a ser aprofundado, quando temos como objetivos centrais à  cidadania e o empoderamento das mulheres.
As políticas públicas realmente preocupadas com a cidadania e a emancipação das mulheres e não com a instrumentalização de seus papéis na esfera reprodutiva devem, portanto, incluir a perspectiva de gênero. Como aponta Fontes (1993), o cotidiano mascara a existência de uma determinação social dada pelo gênero, ampliada e reformulada pelo sistema de relações predominantes. A perspectiva de gênero permite trabalhar com a desagregação dos grandes dados demográficos e com o reconhecimento dos papéis diferenciados, interesses e necessidades de homens e mulheres operando uma transformação nas duas abordagens tradicionais do planejamento: a setorial e a integrada.
Fontes (1993) aponta desafios de duas ordens. O primeiro, superar os limites dos programas e projetos nos aspectos que reforçam os papeis tradicionais das mulheres e não contribuem para sua autonomia e empoderamento. Segundo incluir nos projetos e programas, ações que gerem igualdade de direitos e de oportunidades.
Não basta, no entanto, reduzir essa dimensão a ações educativas. Há que se priorizar no âmbito municipal: creches e escolas públicas em período integral; programas de saúde numa visão integral e não meramente reduzida à esfera reprodutiva, restrita a programas de planejamento familiar de qualidade e coberturas questionáveis; moradia digna; restaurantes populares; atividades de lazer e cultura, criação de redes de economia solidária redimensionando a atuação das mulheres nos chamados programas de geração de renda, entre outras propostas.

3. CONCLUSÃO

Finalizando gostaríamos de reforçar dois aspectos. O primeiro é que sem dúvida, nas atuais condições de miséria, de não cidadania, não se pode prescindir de programas de combate à fome e a pobreza; é preciso também reconhecer que muito desses programas tem um impacto positivo na vida das mulheres, como mostra, por exemplo, a  avaliação  feita sobre o programa municipal Bolsa-família em vários municípios brasileiros, que apontaram o quanto é significativo às mulheres serem as principais beneficiárias. Há uma melhoria das relações conjugais e familiares, em parte, pelo acesso das mulheres aos recursos financeiros, ao acesso à propriedade da casa, atribuindo-lhes uma nova qualidade em sua posição na configuração familiar; as mulheres passam a freqüentar novos espaços, há o fortalecimento da  autoestima. Há, portanto, uma dimensão a ser potencializada.
O segundo aspecto é que ações focalizadas devem ser combinadas com ações e projetos de caráter estratégicos. Impactos efetivos só são possíveis em programas focalizados com perspectiva de gênero, articulados a políticas estruturais como: programas de geração de emprego e renda; reforma agrária; políticas de apoio à agricultura familiar, aumento do salário mínimo e ampliação da previdência social, entre outros direitos, que serão responsáveis pela melhoria da qualidade de vida de todos, homens, mulheres, crianças, idosos, deficientes, negros, índios, não importando a composição familiar.
 
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


  • FONTES A.e NEVES M.G. Gestão Municipal e Perspectiva de Gênero. Revista de Administração Municipal. Rio de Janeiro. V.40. n. 206, p.52-53.
  • LAVINAS, L.  Gênero, Cidadania e Políticas Urbanas. In Globalização, Fragmentação e Reforma Urbana. Civilização Brasileira, 1997
  • MOSER, C. A theory and methodology of Gender Planning: Meeting Practical and Strategi gender needs,Gender and  Planing Working Papers. Nro.11. Developement Planning Unit. University College London, 1986.
  • NOBRE, M. e FARIA N.  Porque o feminismo deve ser radicalmente contra o neoliberalismo.  Folha Feminista, março 1999. SOF. São Paulo.
  • SILVEIRA, M.L. Políticas Públicas de Gênero: Impasses e Desafios para fortalecer a agenda política na perspectiva da igualdade. In Revista Presença de Mulher, ano XVI, n. 45, outubro/2003.
  • SOARES V. Projeto Vila-Bairro: Impacto nas Relações de Gênero. . In Governo Local e Desigualdades de Gênero.  Estudos apresentados pela FGV-EASP, Hewllett, Fundação Ford e AGENDE. São Paulo, 2002.
  • ZARETSKY, E.  O capitalismo, a família e a vida privada. Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1976.



 

0
1 mil visualizações •
Atualizado em
Denuncie conteúdo abusivo
Marcus Swell Brandão Menezes ESCRITO POR Marcus Swell Brandão Menezes Escritor
Maceió - AL

Membro desde Agosto de 2014

Comentários