O INGLÊS, A NOIVA E OS TRILHOS
Início de tarde de outono na linda cidade serrana de Teresópolis. Após a saída do trem cremalheira da estação em direção ao Rio de Janeiro, Maíra pula a rampa da conhecida "Gare do Alto" - feito uma felina - e deita-se nos seus trilhos, adormecendo serenamente, tendo lindos sonhos. Maíra era uma mulher de parar a estação! De cabelos morenos, olhos cor de jabuticaba, lábios bem carnudos, pele lisa, cintura fina, pernas arredondadas e um rosto de princesa, a jovem deixava qualquer cidadão em transe, principalmente os estrangeiros que pela cidade circulavam.
Os batentes assentados sobre o barro, naquela tarde fresca de outono, acabariam por lhe servir como estrados de uma cama, nada confortáveis por sinal. Também a serviriam de encosto ao lado de um dos trilhos daquela concorrida linha férrea, para assentar sua cabeça cheia de mechas, que seriam amaciadas contra a dureza do metal frio.
Maíra não se importava com isso. Nem se importava de saber dos horários de retorno dos trens de passageiros que acabavam de sair, mas só queria, mesmo que deitada inconfortavelmente sobre os gelados trilhos, lembrar de uma coisa: a forma terna e eterna, do beijo de breve despedida que levara romanticamente na praça do bairro do Alto, quando da partida de seu charmoso namorado inglês, que se dirigiria para a Capital e que só retornaria 15 dias depois.
- Ah. Thomas Druke ... volte logo, meu amor! Falava baixinho para si mesma Maíra, totalmente apaixonada, olhando para o céu e para as copas das árvores que rodeavam a estação, cercada pela mais surpreendente mata atlântica em quase completo silêncio - não fosse quebrado pelo canto vindo de longe, das cigarras que se abrigavam nos troncos das árvores às margens do cristalino rio Paquequer.
Ela cochila por alguns minutos, ainda que com os olhos entreabertos. Um quarto de hora depois, vem a adormecer profundamente, o que perdurou por seguidas horas ininterruptas. O Crepúsculo chega. A escuridão passa a reinar lentamente no vale.
Os trilhos começam a esfriar ainda mais por causa do sereno noturno. O brilho das estrelas emergentes da noite já davam o seu sinal de existência anunciando uma longa e calma madrugada. E a jovem Maíra... não mostrava nenhum sinal de despertar, permanecendo inerte no caminho de ferro.
Um trem que saíra do Porto de Piedade às 18 horas, após enfrentar a lenta e escorregadia subida da serra em direção à Teresópolis e de ter passado por inúmeros sacrifícios, peregrinado de estações em estações, como as de Magé, Guapimirim e Barreira da Serra, começa a anunciar, em silvos fortes, a sua chegada na parte plana do traçado pós-serra, na proximidades da bucólica estação do Alto, já no território de Teresópolis.
Maíra, totalmente inerte, em sono profundo, não podia sentir aproximarem-se a vibração do avançar do trem e nem o calor de sua sofrida fornalha. Não havia ninguém por perto para alertá-la de que o dragão de ferro estaria mais próximo do que ela poderia imaginar. Em seus sonhos, Maíra só tinha espaço para se fixar aos pensamentos de como seria a sua vida juntamente com a vida do inglês Thomas Druke na Capital e talvez até residindo em Londres - na terra da Rainha - imaginando sua história, seus planos, seus sonhos e suas realizações com ele. Sempre com ele.
O maquinista Antônio, ao tempo de ganho de embalo pós-subida, dá, de sua cabina, o apito com silvo forte. Insiste novamente em silvos mais longos, principalmente ao ver um objeto estranho atravessado inerte pelos trilhos. Fica preocupado com o que vê e lembra vagamente das histórias que alguns moradores costumavam dizer sobre os mistérios daquela Estação do Alto.
O trem continua a se aproximar e... cada vez mais perto, o maquinista Antônio começa a ver a face da linda jovem adormecida num dos trilhos. Ao mesmo tempo, começa a rezar o Pai Nosso e a Ave Maria, puxando a alavanca do freio com toda a força para dar o contra-freio no intuito de parar o comboio.
Maíra não se levantava, não piscava os olhos e nem se mexia sequer. Estava como se fosse em transe. Não se via a sua respiração! Estava em outro mundo!
O Maquinista Antônio, tentando frear a locomotiva por todos o meios, um comboio que puxava mais de 30 vagões de cargas e de passageiros, chega com a maquinaria ao corpo adormecido de Maíra e o pior acontece... a locomotiva passa por cima do corpo dela, sem ouvir sequer um grito da donzela adormecida. Aquele trem só iria parar à quase 100 metros do local do acidente!
Chora desesperado, o maquinista!
- Meu Deus, Meu Deus, matei a jovem! Gritava, Antônio.
Com o trem já parado, Antônio pula da cabina e corre em direção ao ponto de desastre. Tremia por todo o lado. Chegando lá, com as mãos na cabeça, nada viu e os presentes no vagão que vinham de Magé, também nada viram!
Um verdadeiro mistério!
O atordoado maquinista Antônio, suando frio, foi em procura do agente da estação, Sr. Gervásio, para relatar o fato. Lá o encontrou cochilando sobre a escrivaninha e telégrafo da sala de despacho da estação. Decidiu bater o sino fortemente assustando-o em estrondoso despertar.
- O que foi, Antônio, o que foi??? Gritou Gervásio, assustando agora novamente ao Antônio, que já estava pálido e quase mudo.
- Um acidente! Eu causei um acidente, Gervásio! Antônio exclamava desesperadamente ao agente da Gare do Alto.
Depois de poucos minutos relatando o que se deu, Antônio passou a descrever as feições da linda jovem que vira estirada pelos trilhos antes do atropelo. Então, o experiente agente da estação, colocando a mão no ombro do maquinista Antônio, olhou dentro dos olhos dele e sussurrou baixinho para que outros passageiros não ouvissem:
- Amigo, não se culpe! Você acaba de presenciar a nossa querida Maíra, uma jovem moça prometida em casamento à um rico engenheiro inglês que foi chefe na construção de uma ponte pencil, por um um contrato que fez com a ferrovia por aqui. Durante o tempo em que aqui permaneceu, assumiu casar-se com ela e dar-lhe uma nova vida, longe das plantações de café, ao qual ela trabalhava diuturnamente lá pelas bandas de Sumidouro.
- Thomas Druke! Sim,Thomas Druke! Era o nome desse ingrato noivo ! - Completara seu raciocínio, o agente Gervásio ao maquinista Antônio.
- Meu Deus! Uma assombração em meus trilhos! - Desabafou o maquinista.
E continua Gervásio com a narrativa:
- Druke resolve covardemente largar a jovem Maíra no altar e fugir no primeiro trem para a capital, levando com ele a serviçal da Hospedaria dos Claussen em que se hospedava frequentemente, trocando a ingenuidade de Maíra pela astúcia da empregada daquele abrigo, que nem era tão linda como ela. Ambos tinham romance às escondidas, o gringo e a serviçal.
Acrescentando, o agente da estação continuou a dizer :
- A Maíra, desgostosa, se torna uma jovem neurótica, lunática e louca. Seu fim se dá quando se joga na frente da primeira locomotiva Baldwin que chegava ao vilarejo desta estação e morre esmagada na frente de muitos passageiros. Foi trágico! Todos choraram a perda da linda jovem, que estava cega, apaixonada por esse pilantra inglês - que nem ao sepultamento dela compareceu.
- E em todo o mês de junho - mês do quase casamento de Maíra com o inglês - a sua alma sisma em esperar o amor perdido, deitada nos trilhos em que ela adormeceu para sempre, sob o cintilar da lua crescente e o sereno fino que costuma cair por esta estação. Acrescentou o agente da estação, Sr. Gervásio.
-Vamos! Vamos orar pela alma dela, maquinista! Vamos orar! - Sugeriu o Sr. Gervásio ao Antônio.
- E da próxima vez que você subir a serra pelo mês de junho, Sr. Antônio, traga uma vela acesa em sua casaria da locomotiva em favor à alma dela. Não terás mais sustos, amigo! Te garanto! - Afirmou o Sr. Gervásio.
- Ore...
- Ore por Maíra...
Tempos depois, pelos relatos mencionados por muitos, aquela estaçãozinha veio a receber o apelido de "Estação de Maíra", aquela que pela eternidade espera o retorno de seu amor, ao Alto.
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