Virgílio
Virgílio
Assim se achava formidavelmente abastecido
O meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais
Da inteligência – e mesmo da estupidez.
Eça de Queiroz, Civilização
Às oito horas da noite, enfim, Virgílio chegou em casa. Logo após um dia cheio, trabalhoso, de intenso labor, ainda perplexo, acendeu o seu cigarro. Cabisbaixo, demorava um tanto, depois erguia-se, bisbilhotava a vida alheia em frente à calçada, acenava para os vizinhos, assobiava para os cachorros e tangia os gatos. A experiência de fumante já não tinha o mesmo significado de antes, nem o mesmo prazer de outrora. Os tragos, agora, não eram somente uma distração bem como fora dias atrás, a fumaça que saía voluntariamente pelas narinas, vinham repletas de reflexões, dúvidas, incertezas e medo.
Às nove horas entrou e sentou-se no sofá. A filha engatinhava pela casa enquanto ele esperava o café. A esposa olhava as notificações no celular enquanto a água esquentava. A chuva caía lá fora, desimpedida. Banhava as ruas, as casas, os bares; lavava e acalmava os ânimos, e ao córrego, corria com a força da água a bituca do único cigarro que havia fumado naquela noite.
Às dez horas, arrependeu-se de ter tomado o café. Ficou agitado. A cafeína era o veneno que matava o sono do pobre homem. A noite seria obscura. As profundas olheiras no dia seguinte provariam a afirmação.
Sem premeditação, disse a sua esposa que desejava ler um livro.
– Livro? – o indagou impressionada. Logo em seguida continuou:
– Por quê? Não entendo. Por quê?
Não respondeu. Virgílio saiu da sala, enigmático, com um olhar frio e sem afeição; a esposa, ao observar aquele gesto sem impulso, acompanhado de uma postura frágil, condoeu-se do marido; "nunca o vi assim" pensou consigo mesma.
Às dez e meia da noite, Maria Helena recebeu alegremente a visita de sua prima Eugênia. Conversaram, riram e quebraram os cadeados de seus segredos íntimos, falando sobre suas vidas conjugais sem o menor pudor. Contou-lhe também sobre o estado letárgico do marido que, somente naquele dia exato deixava-a intrigada. Eram vinte e dois anos de casados e nunca vira-o assim.
– Virgílio não lê sequer as placas de trânsito, minha prima, e deu agora pra querer ler livros.
– Estranho, Leninha.
– Pois é!
Eram onze horas da noite. Virgílio sentou-se na cama da filha. Ela dormia profundamente. Virgílio penetrou um olhar paternal. Acariciou o seu narizinho. Ritinha coçou-o com a sua mãozinha direita sem perder o sono. Logo em seguida, passou o polegar nos pequenos lábios da filha, lábios finos como o de Virgílio. Maria Helena, ao passar pelo corredor de ponta de pés, viu o marido com a filha pela porta entreaberta. E mais uma vez, comoveu-se vendo o marido contemplando-a.
Maria Helena começou a ficar preocupada. A imaginação de Helena só concebia aquele olhar como significação de despedida. Será que Virgílio pensava em se suicidar? Nunca tivera visto nem por um instante tão profunda contemplação. O que se passava pela cabeça do marido? Os únicos fatos costumeiros da vida de Virgílio que transparecia naturalmente era o cansaço físico diário, e junto a isso, reclamações fundadas e infundadas. Às conversas que partiam da experiência concreta de Virgílio não sustentava sequer um conceito filosófico que pudesse servir de herança cultural à sua filha, muito menos como modelo pedagógico para educar a esposa. Maria Helena nunca duvidou da capacidade do marido; a presença dele junto à família, o seu desconforto com o labor diário, as humilhações que passara, as inimizades que juntava-se a anos, dava-lhe muitos assuntos para conversas tediosas. À noite, descarregava todas as mazelas de um dia cheio de trabalho em cima da esposa; mas para ela, toda reclamação era compreensível sob a condição de não deixar faltar o salário e o pão de cada dia. Ter comida na mesa, roupa para vestir-se e casa para morar era mais que suficiente, independente do sofrimento de Virgílio ou não.
Meia-noite. Virgílio deitou-se em sua cama. Maria Helena dentou-se ao lado. A luz do celular iluminava o rosto de Virgílio, um rosto inexpressivo, fisionomia beirando a velhice, olhos enfadonhos e cheio de dúvidas ao mesmo tempo. Maria Helena chegou-se perto dele para bisbilhotar.
– Sai! – gritou e trouxe ao peito a tela do celular.
– Ué, o que você está vendo de tão importante que eu não posso ver?
– Nada não!
A filha do casal acordou-se. Talvez o grito de Virgílio, alto e gutural, havia despertado o sono da filha, que agora chorava, estrangulando os gritos. Maria Helena saiu do quarto dizendo:
– Vou acalmá-la – levantou-se da cama amarrando os cabelos lisos e pouco ondulado, fitando o marido irascivelmente.
– Mas daqui a pouco eu volto e, por bem ou por mal, Virgílio, você vai me contar o que está acontecendo.
Meia-noite e meia, Virgílio sentou-se junto à mesa de jantar para escrever. O estudo não era algo muito importante para Virgílio, e já que o esforço intelectual não brotava em seu íntimo, a escrita, obviamente, tornara-se irrisório; porém, mesmo que nada de edificante saísse da cachola do rapaz, aperreava-se para expressar alguma coisa, idéias, confissões, expressões cotidianas etc. Virgílio sempre empenhou-se ao máximo aos confortos de casa, os bens materiais eram o seu paraíso. A família tinha tudo, menos uma escrivaninha para o estudo. Uma biblioteca? Nem pensar! A inteligência não era objeto de desenvolvimento, e nunca foi o centro da sua atenção. Talvez, tivesse-lhe faltado modelos, homens cultos, consumidores e divulgadores da verdade, homens verdadeiramente letrados.
Por um segundo, ainda com a caneta em mãos, segurando-a com uma força desnecessária, escreveu o próprio nome.
– Quem é Virgílio, resmungou.
Virgílio foi até onde pôde. Tentou acessar as imagens mais límpidas da memória e não obteve sucesso. "Quem é Virgílio" perguntava-se repetidas vezes. "quem é"… enfraquecia a voz.
Maria Helena sentou-se e perguntou:
– O que está acontecendo?
Virgílio nada respondeu.
– Virgílio, o que foi, querido? – Insistiu a esposa.
O marido Recompôs-se, respirou lentamente, deixou-se mais leve e rasgou o proêmio de seu escrito.
– Você sabe que estou farto do trabalho – desabafou com os pedaços das folhas em mãos.
– Eu sei.
– Hoje foi a gota d'água. Atendi um homem que precisava de uma caixa de Antibiótico. Eu percebi que ele estava com muito medo. O rapaz estava com uma máscara na cara e luvas nas mãos, usava também outros paramentos e esfregava as mãos a todo instante com álcool setenta. Antes de me pedir o medicamento, ele se apresentou como Doutor Sérgio. Apresentei-me também, saudei-o, e disse-lhe o meu nome. Logo em seguida ele respondeu-me com essas palavras, sem tirar nem pôr: – Oh! Que honra, meu caro Virgílio. Teu pai era assim como eu, adorava viver imaginativamente imerso na obra dos grandes poetas da literatura universal?!
– Pedantismo puro – disse a esposa.
– Sim!
– E por que isso te chamou a atenção?
– Tenho quarenta e cinco anos. Sei de cabo a rabo a composição de inúmeros medicamentos, posologia etc., mas não sei a origem do meu próprio nome, muito menos algo sobre os homens ilustres que me antecederam. Antes de mim, existiu esse tal "Virgílio", o poeta. Ele reaparece no inferno de "Dante", outro poeta. Eu estava pesquisando antes de você me atrapalhar. "Virgílio"? Por que foi que o meu pai me colocou esse nome? Nunca quis questioná-lo. Todo mundo me chama por Virgílio. Todo mundo. Não tenho apelido nenhum. Que motivo tenho eu para ser chamado de Virgílio? Meu pai me colocou esse nome. Mas o motivo da escolha ele nunca me contou.
– Virgílio é um belo nome, eu amo o seu nome.
– Eu não sei. Creio que minha vida só fará sentido se eu estudar tudo sobre Virgílio.
– Estudar? Pra quê? Isso irá lhe acrescentar em algo de positivo na profissão? Você está exagerando.
– Estou? Se você tivesse visto o entusiasmo do médico, provavelmente não acharia exagero nenhum. Nunca vi um entusiasmo como o dele. Ele sabe o significado de "Virgílio", mas eu não. Nunca passei por tal humilhação. Não era um farmacêutico que estava ali para ajudá-lo, pra ele, eu era o poeta.
– Torne-se um – respondeu-lhe a esposa.
– Mas por um instante, me tornei um Romano. A questão central ainda não é essa, Helena. O que me inquieta de verdade é a sábia herança dos nossos antepassados que estão disponíveis a nós, mas que por outro lado escondem bem escondido. Olha aqui – digitou "Helena" no Google – "He-le-na", do autor Machado de Assis. Você faz parte desse legado. Tudo isso é novo pra mim, por mais que tudo seja tão antigo. Eu vou estudar, você vai ver.
– Se você acha necessário estudar, faço questão de aprender com você.
– Tudo bem!
Virgílio empreendeu com enorme esforço o trabalho intelectual. Num primeiro contato com a obra do poeta, a Eneida provocara-lhe um desconforto semântico, ou como ele bem gostava de dizer "uma complexidade de idéias". O panorama histórico e cultural de Roma tornou-se o seu maior objeto de estudos. Deixou de lado a poesia, Virgílio, agora, abria-se para o campo especializado, histórico e antropológico. O interesse pela verdade tomou-lhe por completo, o que não tinha importância antes, hoje, imortalizava-se como símbolo do bem supremo; perguntava-se, e, quando podia, indagava alguns de seus professores que lhe dessem pistas claras para entender melhor a Eneida, tendo então o suporte necessário para não perder tempo com superficialidades.
Os hábitos mudaram, as roupas e a forma de falar também. Deixou de lado às músicas populares, passando bruscamente a ouvir Chopin, Jean Sibelius, Vivaldi e outros tantos compositores da música clássica. Assim como os versos de Virgílio trouxeram perplexidade ao cérebro do Farmacêutico, a complexidade de notas das sinfonias de Bach trouxeram ojeriza aos ouvidos de Helena quando Virgílio deixava em alto volume às sinfonias.
– Ninguém canta nessas músicas não, é? – indagava ao marido com a voz estressada.
Virgílio, sem o menor interesse de elevar o espírito da esposa, aos poucos, deixava-a de lado. Ambos comiam na mesma mesa, dormiam na mesma cama, partilhavam de tudo quanto tinham a tantos anos, e hoje não partilham mais das mesmas idéias. Helena aborrecia-se com a redução do orçamento da casa em decorrência da alta aquisição de livros do marido. Para ele, em certo momento, o saber tornou-se mais importante que a necessidade de comer. – "coma os livros agora, seu imbecil" – dizia a esposa.
As brigas entre o casal tornara-se mais intensas ao decorrer dos meses. Virgílio entrava pelos fundos da casa, escondido, com sacolas cheias de livros. No vago tempo que sobrava, quando não lia-os, sentava-se em frente a estante e contemplava às obras empilhadas, apenas por fetiche. Mesmo que Virgílio discorresse num esforço extremado em fazer da esposa uma mulher de amplas virtudes, não conseguiria, pois o seu coração estava longe da verdade; e, na realidade, um coração de pedra jamais sensibiliza-se com qualquer coisa no mundo. Não eram mais a união de duas almas, era apenas a junção de dois seres em uma só carne. Infindáveis almas dialéticas, duas antíteses que jamais teriam a disposição adequada para a síntese perfeita.
Maria Helena se achegou ao íntimo e secreto lugar de estudos de Virgílio, lugar este no qual ele construiu para bem melhor aprender a sabedoria dos homens. Ao deparar-se com o marido sentado em frente a uma pilha de livros, largou em cima do marido um aviso desnecessário:
– Você vai ver, Virgílio, ficará louco com todos esses livros.
Virgílio olhou-a profundamente, e com os olhos semicerrados de ódio, ultrapassou os limites do pudor e desabafou de uma vez por todas.
– Para ser sincero – levantou-se Virgílio da cadeira, imponente, sem titubear nem um segundo – não vamos tolerar o intolerável, pois eu sei e compreendo que você não suporta os meus verdadeiros modos e novos hábitos, a minha busca incessante pela verdade e a minha mais nova personalidade intelectual. E eu, sem querer confessar outrora, – mas dessa vez abro-me ao extremo da realidade que sonda a minha alma –, digo-lhe que não suporto a tua burrice.
– Você me chamou de burra? – surpreendeu-se com a maneira sutilmente agressiva do marido em lhe repreender.
Virgílio havia modificado o seu estado interior tantas vezes por ser diminuído, xingado e desmotivado que, naquele momento, não exitaria mais em dizer à esposa a verdade das coisas.
Não esperou outra reação de Helena, usou a potência da voz para expulsá-la do seu escritório.
– Suma da minha frente, agora!
Numa manhã de segunda-feira, Virgílio saiu para o trabalho. Já haviam se passado cinco dias, e o casal, a beira de um precipício emocional, não dirigiam-se um ao outro nem ao menos para saudarem-se com um "bom dia".
Já era hábito de Virgílio levar consigo um livro na bolsa, porém, naqueles dias de trevas espiritual, já não havia mais disposição para a leitura. Abandonou o tomo de Flávio Josefo enfastiado e sem paciência. No ônibus, Virgílio mirava o olhar para fora da janela, e vendo a praça do Jaraguá completamente vazia, sentia-se interiormente impelido a voltar-se para dentro do ônibus para observar as caras de cansaço dos passageiros. Os semblantes não só expressavam o cansaço diário, era mais do que isso, era a fadiga da vida, a lassidão do tempo que se esvaía sem um sentido concreto, e por isso, via o real motivo de tantas feições inertes, olhares imóveis, lábios descontentes e corpos extenuados.
A tardinha, já em seu local de trabalho, Virgílio recebeu a visita de Sérgio. Virgílio expressou-se falsamente com exagerada cordialidade.
– Olá, caríssimo! Como está, meu digníssimo doutor?
– Muito bem, meu caro Virgílio! E você? O que tem feito, além de atender-me sempre com deveras gentileza?
– Iniciei-me no estudo da obra do poeta cujo nome me pertence.
– Ah! Que interessante.
– Pois é – respondeu-lhe com profunda tristeza.
O doutor chegou bem perto de Virgílio, e perguntou:
– Cá pra nós, meu caro Virgílio, o que aconteceu? Você está meio abatido!
Virgílio exitou em responder ao questionamento do Doutor, pois não cabia, naquela situação, declarar os problemas pessoas ao seu fiel fregues. Mas o doutor insistiu:
– Diga-me, rapaz. Não se acanhe.
– É que desde que comecei a estudar, mudar os hábitos e as amizades, tenho entrado em constante conflito com minha esposa. Nunca pensei que isso fosse acontecer. Meu relacionamento com ela, desde esses vinte cinco anos, nunca passou por tão grave disputa entre sabedoria e ignorância. Assim como um profeta não é aceito na sua própria terra, assim também é com o sábio, que, pelo andar da carruagem, parece não ser bem-aceito entre os familiares.
– Eu preferi amar a sabedoria – interveio o doutor – e com isso – continuou – perdi o amor da minha vida, minha esposa. Infelizmente, ela preferiu a ignorância, e me deixou logo que iniciei a empreitada intelectual. Mas não desanime, não se pode servir a dois senhores.
Virgílio colocou os medicamentos do Doutor na cesta, e agradeceu o conselho.
Ao chegar em casa, Virgílio encontrou a esposa chorando; pelo visto, a situação em que os dois encontravam-se havia deixado-a triste. Virgílio parou em frente a porta por alguns segundos, seguiu em direção a Helena, e logo depois, beijou-a na testa. Entreolharam-se por um instante. Virgílio disse-lhe:
– Deixo esta casa ainda hoje.
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