Por quê?
Linguistas e não-linguistas (meu caso) sabem que a escrita é mais ou menos como a fala. Uma não dá conta de tudo o que a outra encerra, mas ambas lidam com palavras. Da mesma forma, ler é mais ou menos como ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar… Lemos com os olhos, mas o que se lê mobiliza ouvidos, narinas, papilas gustativas e pele.
Eu costumava dizer aos alunos de comunicação social que minha saudosa avó lia o mundo com avidez e profundidade. Ela nunca frequentou escola e, mesmo assim, percorria com os cinco sentidos, com a mente e com o coração os signos que textualizam a existência, esta Obra cujo autor (caso haja) prefere permanecer anônimo.
Disse em outra postagem (Paulo Freire e os direitos humanos) que, mesmo sendo professor, a escrita se ajusta melhor ao meu jeito de ser. Não importa qual é esse jeito, cada um o adivinhará (caso queira), mas importa saber que a escrita, assim como a fala, tem motivações as mais diversas. Podemos tagarelar por horas por simples desfastio e escrever calhamaços para divertir ou, por outro lado, discursar com rigor sobre um tema importante e escrever com apuro técnico sobre o que se esconde nas reentrâncias da mente e do coração.
Toda fala e toda escrita são igualmente lícitas, pois sempre houve quem preferisse ouvir o aedo narrar as aventuras de Odisseu a escutar Luther King explicando por que tinha um sonho; e sempre haverá quem prefira ler romances cor de rosa a decifrar obras que exigem participação ativa do leitor – e vice-versa.
Para cada fala, para cada escrita, um universo de ouvintes e de leitores no interior de um multiverso de preferências, todas legítimas!
Como diz o ditado, gosto não se discute, e é por esse viés e por nenhum outro que tento explicar o lugar de minha fala e de minha escrita no interior das vozes e das letras que transmigram de um universo ao outro, de mãos dadas ou de forma hostil.
Em outros tempos acreditei que escrevia para desabafar e por prazer, ou ainda por não conseguir expressar com a fala o que se passava no coração. Hoje entendo que nunca foi para desabafar e muito menos por prazer, pois minha escrita é incapaz de esgotar os miasmas que escapam do pântano existencial. A bem da verdade é um sacrifício, e não um prazer, labutar com as palavras em busca do sentido que transcende a enunciação: o sentido que advém do silêncio.
Escrevo, pois, em complemento à fala quebradiça e incompleta de quem gagueja ao discursar, mas não pode se conter. E não pode por quê? Poderia dizer, como o poeta, que escrevo porque a vida não basta, mas soaria falso vindo de mim, para quem a Obra é suficiente. Ou melhor, muito mais que suficiente: de tão abundante, ela transborda e inunda e, assim como o Nilo, permite.
Por me permitir, concebo que a Obra, que é bendita em si mesma, encerra em seu ventre o ser humano e suas contradições: a bondade e a maldade, a justiça e a injustiça, a riqueza e a miséria, as alegrias e as dores do mundo – contradições sobre as quais, ao meu modo e por não poder evitar, me debruço ao escrever.
https://marcosalexandrecapellari.wordpress.com/2022/03/08/por-que/
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